quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O BEIJO DE JUDAS DO ANJO DA MORTE

A Justiça Argentina condenou no dia 26 de outubro à noite 18 militares por crimes contra a humanidade cometida durante a ditadura militar na década de 70. A decisão ocorreu após oito anos do fim das leis de anistia. O julgamento torna-se um marco histórico na luta pelos direitos humanos em América Latina, que revive os anelos das “Mães da Praça de Maio” na procura por justiça, reunindo o maior número de militares como réus desde que as leis que anistiavam os oficiais da última ditadura argentina foram revogadas, em 2003.
As investigações sobre os crimes cometidos na Escola de Mecânica da Armada (Esma) iniciaram-se nos anos 80, após o país ser redemocratizado. O inquérito foi arquivado com as leis do Ponto Final (1986) e da Obediência Devida (1987). As leis que anistiaram os militares acusados de torturas e homicídios foram promulgadas durante o governo do presidente Raul Alfonsín (1983-1989). No entanto, em 2003, o Congresso Nacional aprovou um projeto de lei do então presidente Nestor Kirchner (2003-2007) que permitiu o retorno dos julgamentos, fazendo com que a Justiça declarasse inconstitucionais os indultos dados pelo ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) beneficiando repressores e ex-guerrilheiros.
Durante o julgamento, os oficiais foram responsabilizados por torturas e mortes nas dependências da Esma, situada na região central de Buenos Aires, que se plasmou numa condena por crimes contra 86 pessoas, das quais 28 continuam desaparecidas e cinco assassinadas com contornos de crueldade extrema. Tal decisão por parte da Justiça foi resultado de 22 meses de investigação, com mais de 160 testemunhas. No veredito final, a Escola de Mecânica da Armada foi declarada por entidades de direitos humanos como “um dos maiores centros de detenção clandestina e de extermínio” criados pela ditadura militar em solo argentino. Na leitura da sentença, o juiz deixou muito claro que os réus foram “condenados por perseguições, homicídio qualificado e roubo de bens das vítimas”.
Entre estes, encontra-se ex-capitão Alfredo Astiz, conhecido como “Anjo da Morte”. Em dezembro de 1977, Dona Nélida, uma “Mãe da Praça de Maio”, depois de presenciar um seqüestro de vários militantes por um grupo de tarefas da marinha, se lembrou de um rapaz loiro, Gustavo Niño, sempre próximo às mães e suposto irmão de uma desaparecida, que se despediu dela com um beijo no rosto, e que poderia ter sido seqüestrado nesse dia. Quando algum tempo depois soube através do noticiário France Press que Gustavo, além de outros vários nomes e apelidos, entre eles “O Corvo” e o “Angel Loiro”, se chamava Alfredo Astiz, membro dos Serviços de Inteligência da Marinha, infiltrado nos grupos de mães de desaparecidos, sentiu em todo seu corpo o espanto e a violência daquele beijo de Judas. Alfredo Astiz, o “Anjo da Morte”, personifica aquilo que existe de pior num ser humano. Essa figura pavorosa é apenas uma peça na máquina infernal do mundo dos torturadores. A justiça Argentina não está fazendo mais nada do que atualizar e reparar a incapacidade e conivência com os regimes da época, para que isso nunca mais aconteça no futuro.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

EMIR SADER: O SIGNIFICADO DA VITÓRIA DE CRISTINA

Todos os que seguem a situação argentina sabiam, desde pelo menos um ano e meio, que o governo de Cristina Kirchner havia recuperado grande apoio popular e teria continuidade. Só poderia ser “surpresa” para os que foram vítimas dos seus próprios clichês, denegrindo a imagem da Argentina e do seu governo. Agora não sabem como explicar uma vitória tão contundente, no primeiro turno, com uma diferença de mais de 8 milhões de votos para o segundo colocado.
A vitória de Cristina tem o mesmo sentido da vitória de Dilma. Pela primeira vez, nos dois países, uma mesma corrente obtém, pelo voto popular, um terceiro mandato. Vitórias fundadas em políticas econômicas que permitiram a retomada do crescimento da economia – depois das recessões provocadas por governos neoliberais, Menem lá, FHC por aqui – articuladas estruturalmente com políticas sociais de distribuição de renda.
No caso argentino, a crise de 2005 aqui, foi a de 2008 lá, com a reação violenta dos produtores rurais ao projeto de lei de elevação do imposto de exportação. Em aliança com a conservadora classe média de Buenos Aires, fizeram com o que o governo perdesse parte substancial do seu apoio e terminasse derrotado na votação do Congresso. Essa derrota se desdobrou numa derrota eleitoral, quando já se sentiam os efeitos da crise internacional.Tal como aqui, a oposição acreditou que havia desferido um golpe mortal nos Kirchner e se preparava já para voltar ao governo, em meio a disputas enormes entre todas as suas tendências, unidas na oposição e na ambição de sucedê-los no governo.
Para surpresa da oposição, o governo reagiu positivamente – como aqui – diante dos efeitos da crise, com políticas anticíclicas e renovando suas políticas sociais. Os reflexos não tardaram a surgir e o governo passou a reconquistar apoio popular, até que, a partir do ano passado, tendo recuperado iniciativa, voltou a aparecer como o grande agente nacional contra a crise. Dois fatores vieram consolidar essa reação. O primeiro, as comemorações do bicentenário da independência argentina, que despertou grande fervor popular, especialmente em amplos setores da juventude, capitalizados evidentemente pelo peronismo, com sua tradicional marca nacionalista.
O outro, foi a súbita morte de Néstor Kirchner, que alguns previram – lá e cá – que seria um golpe definitivo no kirchnerismo. Nesse momento, Cristina se assumiu como estadista à altura daquele momento crucial da historia argentina, dado que Néstor era o candidato à sua sucessão e o maior dirigente político do processo que ele mesmo havia iniciado. Cristina fez daquela perda um momento de afirmação do processo político protagonizado por Néstor e por ela, no bojo da recuperação do apoio popular, que tinha seu fundamento no sucesso das novas iniciativas de políticas sociais – bolsas para a infância, para a terceira idade, para os desempregados, entre outras iniciativas. Enquanto isso, a oposição se digladiava, conforme via a recuperação do prestígio do governo, na disputa pela sucessão presidencial, em um processo suicida, que veio complementar o cenário político que foi tornando Cristina cada vez mais favorita para triunfar, até mesmo no primeiro turno. As prévias eleitorais de agosto, finalmente, cristalizaram todas essas tendências, permitindo prever as melhores perspectivas para Cristina, que se confirmaram plenamente nas eleições de domingo (23). Cristina teve um triunfo esmagador, além de recuperar a maioria na Câmara e aumentar no Senado, e eleger oito dos nove governos estaduais em jogo.
Ela triunfa e a oposição, dividida entre vários candidatos, sofre sua maior derrota, deixando o campo aberto para novos e grandes avanços do governo. Lá, como aqui, a segunda década do século 21 estende a vigência de um governo que busca alternativas de superação do neoliberalismo, nas condições da herança pesada que ambos receberam, avançando na direção do pós-neoliberalismo. Consolida-se o campo progressista latino-americano, confirmando que essa é a vida das forças populares para a superação das desigualdades e injustiças, para o fortalecimento da integração regional e para a afirmação de uma América Latina soberana.
Por Emir Sader