quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

NUNCA MAIS

A condenação do ex-ditador Jorge Rafael Videla à prisão perpétua decretada pela Justiça Federal da Argentina junto com outros 29 repressores renova um marco histórico na luta pelos direitos humanos no continente sul-americano. A sentença, que ordena o cumprimento da condenação em uma prisão comum, foi recebida com extrema emoção e alegria por muitos familiares das vítimas e sobreviventes da repressão ilegal. Pouco se sabe no Brasil sobre os fatos que levaram essas pessoas a festejar com tamanha euforia nas portas do tribunal. Há uma longa história por trás dessas manifestações. Durante o reinado da “Junta Militar” (1975-1983), estima-se que desapareceram trinta mil pessoas. Muitas delas foram lançadas de aviões nas turvas águas do Rio da Prata. Nos primeiros dias no poder, a “Junta” comandada por Videla fez uma única e dramática demonstração de sua disposição de usar a força de modo letal: um homem foi retirado a empurrões de um carro Ford Falcon (veiculo emblemático da policia secreta), amarrado ao famoso Obelisco branco da Avenida Nove de Julio, e metralhado à vista dos transeuntes. O terrorismo de Estado implantado na Argentina durante esse período foi uma sistemática caça a qualquer tipo de oposição ao regime. As desaparições, oficialmente inexistentes, transformaram-se em espetáculos públicos cotidianos, que contavam com a cumplicidade silenciosa das pessoas apavoradas com os operativos.
Quando se decidia eliminar alguém, uma frota de veículos militares aparecia na casa ou trabalho da pessoa, circundando toda a quadra de modo a evitar sua fuga. Em plena luz do dia os soldados e a polícia derrubavam a porta e levavam a vítima, que desesperada gritava seu nome antes de ser introduzida num Ford Falcon, com a remota esperança de chamar a atenção das testemunhas do seqüestro. O caráter público do terror não terminava na captura inicial. Uma vez sob arresto, os prisioneiros eram conduzidos a um dos mais de trezentos campos de tortura que existiam no país. Muitos deles estavam situados em lugares inusitados, como bairros densamente povoados, clubes atléticos, escolas ou alas de hospitais inativas. Muitos brasileiros ficam maravilhados quando passeiam no centro comercial “Galerias Pacífico”, uns dos mais sofisticados de Buenos Aires, fazendo compras sem suspeitar que nos seus porões existe um centro de torturas abandonado. Nas paredes de suas masmorras ainda podem ser vistas as marcas desesperadas deixadas pelos seus prisioneiros mortos: nomes, datas, súplicas de ajuda e misericórdia.
A sentença decretada contra os torturadores argentinos, apesar de não representar ou estar à altura da verdadeira natureza do crime, consolida na memória coletiva a ideia de que esses crimes foram contra a humanidade, num contexto específico de genocídio deliberado. Os assassinatos de pessoas de esquerda durante a década de 1970 não foram parte de uma “guerra suja” na qual se confrontaram duas partes em igualdade de condições, ou apenas vítimas de ditadores loucos de sadismo e poder. O que aconteceu nesse período foi uma coisa muito mais assustadora, muito mais científica e racional. Foi um vigoroso plano de extermínio levado a cabo de forma sistemática por aqueles que governavam o país. Os assassinos faziam parte de um sistema, planejado previamente, que foi utilizado e desenhado do mesmo modo em todo o país, não para atacar pessoas individualmente, senão para destruir uma parte da sociedade que estes indivíduos representavam. É justamente essa a definição que caracteriza um processo de genocídio brutalmente organizado. Este relato doloroso, que afeta profundamente o próprio articulista, possivelmente sirva para aqueles leitores empacotados no maniqueísmo dos embates ideológicos, que exaltam com horror os crimes da ex União Soviética, reorientem seus olhos ao que aconteceu nos países da América do Sul, de modo a usar o expediente do nunca mais para abrir um precedente de alerta aos nossos predecessores.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

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