quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A REALIDADE CONSTRUÍDA

Por que as pessoas têm tanta dificuldade em reconhecer a ciência como um método para entender a realidade? É possível que o ser humano, imerso no mundo do cotidiano, sinta medo de seus aspectos inquietantes? Ou apenas porque a ciência questiona dogmas religiosos sedimentados no inconsciente da sociedade? Ainda hoje, apesar da nossa espécie ter percorrido uma trajetória histórica de 100 milhões de anos, existe uma clara hostilidade contra os avanços da ciência. Não da tecnologia aplicada, aquela que faz parte do dia a dia, senão da ciência que afirma que são as leis e as forças da Natureza, e não os deuses, os responsáveis pela ordem e até pela existência do universo.
Podemos observar que a ciência trabalhou silenciosamente, à margem das crenças estabelecidas como mecanismos de controle social, avançando passo a passo na consecução de seus óbvios triunfos e benefícios, mas sempre fora da corrente principal do desenvolvimento humano. Os chineses inventaram a pólvora, os foguetes, o tipo móvel, a bússola magnética e o sismógrafo. Os indianos inventaram o zero, que significou o primeiro passo para a aritmética e seus resultados quantitativos. No mundo pré-colombiano, os astecas desenvolveram um calendário mais preciso que os dos europeus. Isso lhes permitiu predizer com exatidão a posição dos planetas no firmamento. Mas foi da Grécia antiga que surgiu o método da ciência cética, experimental e investigativa. Qual foi a origem dessa descoberta?
Ela pertence a um fator cultural específico, que foi a assembléia, na qual, segundo Lucrécio, os homens aprenderam, “pela primeira vez a persuadir uns aos outros por meio do debate racional”. Por outro lado, a economia marítima permitia a ampliação do conhecimento além da cultura local, assim como um mundo extenso no qual se colhiam novas formas de observar a realidade. O jônico Lucrécio resumia seus pensamentos da seguinte maneira “A natureza livre e desembaraçada de seus senhores arrogantes é vista agindo espontaneamente por si mesma, sem a interferência dos deuses”.
O leitor ocasional pode se sentir incomodado por estas afirmações. Entretanto, se aprofundar o tema, poderá verificar que, nos livros de Introdução à Filosofia, os nomes e ciência aplicada dos antigos jônicos dificilmente são mencionados neles. Não por acaso aqueles que rejeitam os deuses tendem a serem esquecidos. O desequilíbrio e o pavor que desperta tentar questionar as crenças estabelecidas, faz com que desprezemos a memória desses céticos, muito menos as suas ideias. Seguramente houve, na história da humanidade, muitos pensadores que ousaram explicar o mundo através do método científico, em termos de matéria e energia, tentando disseminar seus conhecimentos em diferentes culturas. Em contrapartida, também foram combatidos ao extremo e eliminados por padres e filósofos empenhados em reafirmar a sabedoria convencional, secularizando-a Às vezes me pergunto o que pode acontecer com um professor de sociologia que tenta descriminalizar o método científico. Quebrar o pensamento linear trazido da escola para a universidade, e transformá-lo numa alternativa transversal, pode gerar desconforto nos acadêmicos pré-formados num mundo cultural onde predomina o pensamento político hierarquizado. As culturas que não enfrentam desafios desconhecidos, nas quais as mudanças fundamentais não são importantes, toda ideia nova não precisa ser estimulada. Nesse caso, o pensamento torna-se rígido; qualquer pretensa heresia pode ser declarada perigosa; podendo ser imposta, por sinal, uma vasta gama de sanções contra ideias não permitidas. Tudo isso sem causar dano à sociedade, apenas ao transgressor. E possível o reconhecimento daqueles que, em vez de acompanhar docilmente os dogmas estabelecidos, tentam desvendar a importância do universo social e físico? Qual seria o inconveniente em aceitar que tal dimensão dogmática não passa de uma mera construção social da realidade, de modo a permitir ao ser humano libertar-se das superstições culturais?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

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