quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O DECÁLOGO DO TERROR

Mais uma vez as assustadas hostes conservadoras recorrem ao fantasma do socialismo para apavorar os leitores. Numa mágica ideológica tiram da gaveta o decálogo do comunista Lênin, publicado em 1913, de modo a aterrorizar os potenciais eleitores nas próximas eleições. Só indivíduos formatados no maniqueísmo da guerra fria podem ainda acreditar no retrocesso da volta ao passado. Não se deixe enganar caro leitor. Apenas preste atenção ao meu relato, por sinal, muito mais cercano da gente do que aquele decálogo ultrapassado pela história.
As pessoas que viveram a experiência das ditaduras militares dos anos setenta devem recordar, especialmente nos países do MERCOSUL, a implantação de regimes de terror por parte de governos de extrema direita. Lembrem-se de dois exilados ilustres que tiveram que fugir do Brasil naquela época, Fernando Henrique Cardoso e José Serra, entre outros.
O Plano de extermínio maciço de opositores aos regimes militares daquele período, atribuído a uma organização de extrema direita chamada “Operação Condor” entre 1974 a 1997, ajudou a restaurar a hegemonia estadunidense mediante um regime de terror nunca antes visto em América Latina. A primeira reunião da “Operação Condor” aconteceu entre novembro e dezembro de 1975, através de um encontro informal na casa do general Contreras, agente da Agência de Inteligência Chilena – DINA, no qual estavam presentes os chefes da Inteligência Militar de Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, de modo a organizar uma operação destinada a realizar um trabalho multilateral dos agentes responsáveis de vigiar, encarcerar, torturar e repatriar opositores aos diferentes regimes que vigoravam na época.
A “Operação Condor” usou, segundo documentos desclassificados pelo Pentágono e publicados pela Revista Cover Action (1996), os serviços de funcionários da CIA como do FBI ligados diretamente ao Departamento de Estado Americano, entre os quais estava o agente Michael Townley, que teve participação no assassinato do general chileno Carlos Prats em Buenos Aires em 1974 e do ex-embaixador Orlando Letelier e sua secretária em Washington em 1976. A Divisão de Serviços Técnicos da CIA cedeu equipamentos elétricos de tortura aos militares brasileiros e paraguaios, capacitando-os sobre como deveria ser graduada a intensidade da voltagem para não exceder a capacidade de resistência humana, a qual eram submetidas às pessoas torturadas. Argentinos e chilenos, que cursaram a tristemente célebre Escola das Américas, com sede no Panamá, já eram experientes nessas atividades. Nos corredores sinistros das ditaduras militares que tanto envergonharam nossas terras latino-americanas, ouvem-se ainda os gritos desgarrados de milhares de seres anônimos dos quais foram tiradas até as últimas gotas de dignidade humana. Grande parte dessa história de horror foi descoberta por casualidade. Em 1992, o juiz paraguaio José Agustín Fernandez que estava investigando a morte de um professor, que tinha sido torturado nas dependências da Secional Política da Polícia de Investigações de Assunção, encontrou todos os documentos originais da “Operação Condor” misturados aos arquivos locais, numa quantidade tão volumosa que foi necessário o uso de vários veículos para transportá-los a um lugar apropriado para a pesquisa jurídica. Mais ainda, a Escola das Américas (SOA) inicialmente estabelecida no Panamá em 1946 e logo transferida para Fort Benning, em Columbus, Geórgia, treinou mais de 60 mil soldados latino-americanos em matérias tais como técnicas anti-subversivas, tiro, mecanismos de extorsão, tortura física e psicológica, inteligência militar e técnicas de interrogação, contra-insurgência, defesa interna e operações antidrogas. Essa “Escola de Assassinos” supera amplamente o decálogo leninista divulgado às fartas, usado sorrateiramente como intento para iniciar uma “caça as bruxas” de modo a criminalizar o pensamento progressista, e fazer acreditar, ao mesmo tempo, que temos comunistas dormindo embaixo da nossa cama.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

A ENGHENARIA ECONÔMICA BRASILEIRA

Todos os empresários do país devem se lembrar muito bem da data 15 de setembro de 2008. Nesse dia, o mercado financeiro mundial, sustentado por um modelo parasitário centrado na especulação desenfreada, parou. Também devem lembrar-se do banco de investimento Lehman Brothers, aquele mesmíssimo que duvidada da solvência do Brasil, que por incompetência não conseguiu superar os efeitos da crise, quebrando de forma vergonhosa. Essa quebra emblemática afetou indiretamente nosso país, ao provocar uma brusca depreciação cambial e uma acentuada queda da demanda dos produtos brasileiros no mercado internacional. O Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil diminuiu consideravelmente, resultado da desaceleração dos investimentos por parte do setor empresarial, que segurou suas despesas de capital, receoso do descalabro da crise que se avizinhava, considerada por muitos como a pior desde o “crash” de 1929. Entretanto, o governo brasileiro, ao implantar um modelo desenvolvimentista a partir de 2003, foi preparando o terreno para se proteger de qualquer ataque especulativo por parte dos picaretas internacionais, ansiosos em recuperar suas perdas. De que forma foi realizada tal façanha, obra de uma extraordinária engenharia econômica?
O governo, através da recuperação estatal, iniciou um processo nunca antes feito no Brasil, que foi a adoção de medidas fiscais e monetárias anticíclicas, evitando assim a contaminação do sistema financeiro nacional, de modo que pudesse ser recuperado o nível das atividades econômicas e produtivas do país. As primeiras medidas contra a contração do crédito foram aumentar a liquidez da moeda, tanto nacional como estrangeira, através da utilização das reservas do Banco Central para vender dólares e frear a depreciação da moeda local, além de criar uma linha de financiamento para as exportações. Tudo isso foi possível porque o Brasil tinha reservas acumuladas de 210 bilhões de dólares, que permitiu sustentar qualquer intento de contaminação externa. Já em 2009, a União abriu uma linha de crédito para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) de 3,3% do PIB, em conjunto com incentivos financeiros para o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Tal iniciativa permitiu, a esses bancos públicos, a aplicação de recursos nos setores produtivos mais dinâmicos e geradores de empregos, como a construção civil, agropecuária e insumos básicos, de modo a incentivar a produção e venda de bens de consumo duráveis.
O mais marcante nessa obra de reconstrução do Estado brasileiro, na qual todos os setores da sociedade se beneficiaram em maior o menor grau, foi a tarefa gigantesca de fazer convergir crescimento econômico com inclusão social. Os programas de transferência de renda, entre eles o programa Bolsa Família em conjunto com o aumento real do salário mínimo, trouxeram uma nova esperança para milhões de brasileiros que permaneceram tanto tempo à margem do consumo social. As opções do governo em revitalizar um modelo assentado em medidas de incentivo fiscal e monetário, tiveram como resultado a recuperação do Estado na sua capacidade de resposta social, propiciando a aceleração do crescimento e a produtividade. Não apenas isso, o aumento do emprego formal, dos lucros e os salários, terminaram acentuando um novo ciclo de desenvolvimento, sinalizado pelo crescimento do PIB em 9% no primeiro semestre de 2010. No entanto, ainda há cegos perante tal desempenho. A cegueira política, intelectual, partidária, ou pior, a cegueira da desinformação, termina reproduzindo o pensamento fragmentado, tão perigoso para a construção do bom senso. A razão é substituída por clichês desgastados e preconceituosos, imunes as mudanças. Da mesma forma daqueles que continuam insistindo em modelos que negam, a priori, a possibilidade de concretizar políticas macroeconômicas que incorporem desenvolvimento com inclusão social, tão importantes para eliminar de vez a desigualdade que ainda nos cerca.
Victor Alberto Danich
Sociólogo

A REALIDADE CONSTRUÍDA

Por que as pessoas têm tanta dificuldade em reconhecer a ciência como um método para entender a realidade? É possível que o ser humano, imerso no mundo do cotidiano, sinta medo de seus aspectos inquietantes? Ou apenas porque a ciência questiona dogmas religiosos sedimentados no inconsciente da sociedade? Ainda hoje, apesar da nossa espécie ter percorrido uma trajetória histórica de 100 milhões de anos, existe uma clara hostilidade contra os avanços da ciência. Não da tecnologia aplicada, aquela que faz parte do dia a dia, senão da ciência que afirma que são as leis e as forças da Natureza, e não os deuses, os responsáveis pela ordem e até pela existência do universo.
Podemos observar que a ciência trabalhou silenciosamente, à margem das crenças estabelecidas como mecanismos de controle social, avançando passo a passo na consecução de seus óbvios triunfos e benefícios, mas sempre fora da corrente principal do desenvolvimento humano. Os chineses inventaram a pólvora, os foguetes, o tipo móvel, a bússola magnética e o sismógrafo. Os indianos inventaram o zero, que significou o primeiro passo para a aritmética e seus resultados quantitativos. No mundo pré-colombiano, os astecas desenvolveram um calendário mais preciso que os dos europeus. Isso lhes permitiu predizer com exatidão a posição dos planetas no firmamento. Mas foi da Grécia antiga que surgiu o método da ciência cética, experimental e investigativa. Qual foi a origem dessa descoberta?
Ela pertence a um fator cultural específico, que foi a assembléia, na qual, segundo Lucrécio, os homens aprenderam, “pela primeira vez a persuadir uns aos outros por meio do debate racional”. Por outro lado, a economia marítima permitia a ampliação do conhecimento além da cultura local, assim como um mundo extenso no qual se colhiam novas formas de observar a realidade. O jônico Lucrécio resumia seus pensamentos da seguinte maneira “A natureza livre e desembaraçada de seus senhores arrogantes é vista agindo espontaneamente por si mesma, sem a interferência dos deuses”.
O leitor ocasional pode se sentir incomodado por estas afirmações. Entretanto, se aprofundar o tema, poderá verificar que, nos livros de Introdução à Filosofia, os nomes e ciência aplicada dos antigos jônicos dificilmente são mencionados neles. Não por acaso aqueles que rejeitam os deuses tendem a serem esquecidos. O desequilíbrio e o pavor que desperta tentar questionar as crenças estabelecidas, faz com que desprezemos a memória desses céticos, muito menos as suas ideias. Seguramente houve, na história da humanidade, muitos pensadores que ousaram explicar o mundo através do método científico, em termos de matéria e energia, tentando disseminar seus conhecimentos em diferentes culturas. Em contrapartida, também foram combatidos ao extremo e eliminados por padres e filósofos empenhados em reafirmar a sabedoria convencional, secularizando-a Às vezes me pergunto o que pode acontecer com um professor de sociologia que tenta descriminalizar o método científico. Quebrar o pensamento linear trazido da escola para a universidade, e transformá-lo numa alternativa transversal, pode gerar desconforto nos acadêmicos pré-formados num mundo cultural onde predomina o pensamento político hierarquizado. As culturas que não enfrentam desafios desconhecidos, nas quais as mudanças fundamentais não são importantes, toda ideia nova não precisa ser estimulada. Nesse caso, o pensamento torna-se rígido; qualquer pretensa heresia pode ser declarada perigosa; podendo ser imposta, por sinal, uma vasta gama de sanções contra ideias não permitidas. Tudo isso sem causar dano à sociedade, apenas ao transgressor. E possível o reconhecimento daqueles que, em vez de acompanhar docilmente os dogmas estabelecidos, tentam desvendar a importância do universo social e físico? Qual seria o inconveniente em aceitar que tal dimensão dogmática não passa de uma mera construção social da realidade, de modo a permitir ao ser humano libertar-se das superstições culturais?
Victor Alberto Danich
Sociólogo

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A DEUSA PRIMORDIAL

Resulta muito interessante poder analisar os caminhos da nossa espécie através da sucessão de mitologias. Todas as crenças relacionadas aos mitos da criação correspondem de maneira surpreendente às etapas cronológicas da história humana. Na primeira etapa, o mundo é criado do nada por uma deusa mãe. Na segunda, com auxílio de um casal criador. Na terceira, um deus macho se apropria do poder e cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Por fim, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho. Como corolário, o mito cristão consolida a transição de um universo matricêntrico para um mundo patriarcal. O onipresente Javé, deus todo-poderoso, faz o mundo sozinho em sete dias e, depois, cria o homem. Logo, num ato de soberba masculina, cria a mulher da costela deste e, finalmente, os premia com a vida no Jardim das Delícias. Mas, por culpa da mulher sedutora, o homem cede à tentação da serpente e ambos são expulsos do paraíso. Ao contrário das mitologias primitivas, nas quais a Grande Mãe era amorosa e permissiva, o deus Javé é único e centralizador, zeloso no controle e obediência de leis rígidas, cuja transgressão é sempre punida. A condenação do trabalho perpétuo é o resultado do pecado original. O trabalho escraviza o homem, e ele escraviza a mulher. A relação homem – mulher perde seu sentido solidário e se efetiva através da dominação masculina.
O culto a uma deidade feminina, na história da humanidade, sempre esteve associada a uma imagem sagrada centrada na fertilidade humana ou agrícola, como também aos ciclos naturais da vida, que remonta a tradições espirituais pré-históricas e que ainda se pratica no mundo inteiro de forma inconsciente. As imagens de deusas, desde a Idade da Pedra, simbolizam a “fecundidade, a nutrição, a generosidade, a comunidade e a própria terra” diziam seus adoradores. Nas tradições dos nativos norte-americanos e de muitas religiões africanas, as deusas femininas controlavam os ciclos de plantação, crescimento e colheita, nascimentos, pró-criação e morte. No império greco-romano, as deusas tinham características masculinas, próprio de civilizações dedicadas à conquista, como Atena e Minerva, guerreiras da sabedoria, ou Artemis e Diana, padroeiras da caça.
Podemos observar que nesse percurso da construção da vida econômica dos povos, baseados na produção de subsistência agrícola, as figuras principais em tal formatação cultural estava centrada no culto às mulheres. A Grande Mãe (Magna Mater) romana era descendente direta da deusa da fertilidade Cibele, que, na tradição semítica era conhecida indistintamente como Astartéia ou Ester. A protetora do hinduísmo (Devi) que é deusa venerada através de variados cultos, entre elas Parvati, Durga e Kali, de inúmeros braços, representavam a suavidade maternal com aspectos de ferocidade guerreira em seu papel de protetora.
Na dimensão do sobrenatural das civilizações, o feminino impregnava o universo social da antiguidade, tanto, que o culto Católico Romano à Virgem Maria provém dessas tradições. Torna-se evidente que tal imagem religiosa, no mundo contemporâneo, tornou-se uma mera figura coajudante do deus macho. Qual foi o resultado de tal processo?
As sociedades de origem matriarcal, demonstradas pelo próprio culto às deusas, tão antigo como a própria humanidade, postulavam uma Mãe Terra, criadora primordial do universo. Quando a sociedade patriarcal destituiu as mulheres do seu poder criador, a Deusa Primordial perdeu seu papel centrado nos ciclos agrícolas e de fecundidade, e foi substituída por um deus masculino poderoso, fazedor de tudo que existe na terra, distante e impenetrável, configurado no centralismo racional do judaísmo, do cristianismo e do islamismo. Do ponto de vista científico, tais configurações estão relacionadas aos aspectos espirituais da sociedade, encampadas na essência das crenças religiosas. Entretanto, ainda assim, existe uma dívida monumental para com as mulheres, que é restituí-las de sua condição histórica na modelagem do mundo dos homens.
Victor Alberto Danich
Sociólogo